Quem vê o sorriso estampado no rosto de Tales Siqueira, 33 anos, nem imagina os desafios pelos quais já passou e ainda passa. Em 1º de agosto de 2019, quando saiu de casa, em Arroio do Meio, em direção ao trabalho, em Estrela, teve sua trajetória de vida alterada por um acidente de trânsito. Nas proximidades do shopping, um triciclo que vinha na direção contrária atravessou o canteiro da BR-386 e invadiu a pista, atingindo em cheio a motoneta em que Tales trafegava. Com o impacto ele foi projetado para fora da rodovia, caindo num barranco.
Por sorte, recebeu os primeiros socorros de amigos, que estavam logo atrás, e foi encaminhado ao hospital por uma ambulância. “Deus colocou os guris ali para me socorrerem. Se não fosse eles, talvez não estivesse aqui”, lembra. Do acidente e o socorro não lembra quase nada, só alguns flashes. No hospital, com múltiplas fraturas nos membros do lado esquerdo – foram sete no braço – soube que precisaria amputar o pé, na altura do tornozelo. “Pensei na família, na minha filha que tinha um mês de vida. Pensei: estou vivo, é o que importa. Não tive lesão na coluna, nem na cabeça. O resto me adapto”.
Mas o que Tales e a família não sabiam é que haveria mais percalços pelo caminho, exigindo muita resiliência. No hospital, ele teve uma sucessão de infecções bacterianas, que ocasionaram novas amputações na tentativa de freá-las. Como o caso só agravava, com a previsão de uma amputação acima do joelho, Tales foi transferido para o Hospital São Vicente de Paulo, em Passo Fundo. Lá passou por tratamento numa câmara hiperbárica, que é um equipamento médico fechado onde o paciente respira oxigênio puro enquanto é submetido a uma pressão duas a três vezes a pressão atmosférica ao nível do mar. A indicação é para casos de amputações e também no combate a infecções causadas por bactérias.
Foi em Passo Fundo que o quadro estabilizou e melhorou. Graças ao tratamento hiperbárico, o joelho foi preservado, o que lhe garante melhor mobilidade com a prótese. Ao todo, foram quase 40 dias de internação hospitalar. Um período de desafios e também vitórias.
Sorte a apoio
Assim como se apresentaram dificuldades, também houve uma série de fatos positivos na vida de Tales. Um deles, sem dúvida, foi a grande rede de apoio que se formou ao seu redor. Desde o momento do acidente, até os dias atuais. Enquanto estava no Hospital Bruno Born, recebia muitas visitas de familiares, amigos e colegas. Além disso, foram várias correntes de orações pedindo pela sua saúde e também ações para angariar fundos para a compra da prótese.
O que ele não esquece é a dedicação de quem esteve ao seu lado, em especial a esposa Katieli Fritsch, que teve de se revezar nos cuidados com a filha Theodora, recém-nascida, e o marido. Lembra também da enfermeira que ficou por horas tentando uma vaga para a internação em Passo Fundo e de todos os profissionais que o atenderam, em especial, à equipe de home care da Unimed, que o visitavam em casa, dando todo o suporte necessário.
Depois que Tales saiu do hospital, a família passou por momentos desafiadores. Para tudo ele precisava de ajuda. Foram três semanas em cadeira de rodas, porque as fraturas no braço não permitiam que ele se apoiasse nas muletas, e meses até que tudo voltasse ao mais normal possível. Nesta fase, pensava em como teve sorte. “Quem viu o acidente diz que eu estar vivo é um milagre. Quando estava de cadeiras de rodas eu pensava: podia ser assim para o resto da vida, mas por sorte não é, vou poder caminhar, ver minha filha crescer. Então não tenho do que reclamar”.
Prótese
Para que Tales possa levar uma vida normal, faz uso de uma prótese. A família e os amigos não mediram esforços para a aquisição. “Tudo o que estava ao nosso alcance foi feito”, relata a esposa, contando que houve várias ações entre amigos para arrecadar o valor necessário.
Por obra do destino e de amigos em comum, Tales ganhou o pé articulado do triatleta André Barbieri, que é natural de Lajeado e mora nos Estados Unidos. André teve de amputar parte da perna esquerda após um acidente de esqui e hoje recebe diversos patrocínios, inclusive de fabricantes de próteses. Como Tales tem o mesmo porte físico do triatleta, o pé se enquadrou nas suas necessidades. “É um pé especial, de excelente qualidade, que absorve impacto e que me permite ficar o dia todo com ele. Se fosse comprar teria de desembolsar uns R$ 25 mil”, conta, observando que este tipo de material é muito caro. A outra parte da prótese custou mais de R$ 18 mil.
Além do alto custo, foi necessária uma série de adaptações para que o ir e vir de hoje fossem possíveis. No início do ano passado, quando estava na fase de reabilitação, antes de receber a prótese em definitivo, teve de passar por mais uma cirurgia. Por causa da pandemia, a cirurgia atrasou e foi realizada somente em julho, deixando o rapaz por mais de três meses sem a prótese. Em setembro iniciou a nova adaptação da prótese e em novembro, um ano e três meses depois do acidente, pôde retornar ao trabalho. Tales, que trabalhava no setor de manutenção da Tangará, no retorno foi remanejado para o administrativo, função que exige menos trabalho braçal.
Adaptações diárias
Vencidas as batalhas mais difíceis, Tales ainda passa por desafios. O dia a dia de quem faz uso de uma prótese, por mais bem-adaptado que esteja, apresenta limitações. As tarefas diárias são executadas com mais cuidado, e momentos de lazer, como o futebol, onde Tales se destacava como goleiro, por enquanto, não fazem parte do seu cotidiano. “Aos poucos, devagarinho, estou voltando aos treinos. O futebol faz falta, mas não é tudo. Vi situações muito piores. No dia a dia, faço as coisas no meu ritmo, com mais cuidado, devagar, conforme posso”, pontua.
As adaptações são diárias. Tales ainda precisa fazer uma cirurgia no braço, que teve perda de 70% da força. Mesmo assim, nestes quase 20 meses, poucas foram as vezes que o sentimento de tristeza se apresentou. E sempre por pouco tempo. “Nunca fui de reclamar da vida. Agora não tenho porquê. Tive muito apoio. Não tinha como deixar que isso me abalasse. Tenho sequelas, mas têm situações muito piores. Posso levar uma vida quase normal, não estou preso a uma cadeira de rodas”, avalia, ressaltando que ainda faz fisioterapia duas vezes por semana para reforço muscular.
Entre suas inspirações para seguir a vida com alegria e sem ressentimento, estão o triatleta André Barbieri e o ex-goleiro da Chapecoense, Jackson Follmann, que também teve parte da perna amputada após o acidente aéreo. Tem, inclusive, um boné autografado pelo ex-atleta. Além destes, há uma série de outras pessoas que Tales conheceu ou passou a seguir nas redes sociais e que enfrentam a mesma situação. “Pensava muito no Follmann no começo. Se ele conseguiu se adaptar, por que eu não conseguiria? Ele foi uma das minhas inspirações para não deixar me abater”.
De todos os aprendizados que o pós-acidente proporcionou, um se tornou quase que um mantra para Tales e a família: “por mais difícil que tudo possa parecer, sempre há pessoas boas do seu lado”. E, por isso tudo se diz muito grato a todos que o ajudaram. “Tanto os que fizeram correntes de oração, como familiares, colegas, amigos que iam me visitar, que fizeram rifa. Todos foram importantes para que eu chegasse até aqui”.