Quando minha mãe faleceu, há três anos, entre as dolorosas obrigações desta partida constava organizar e dar destino aos objetos de uso pessoal da dona Gerti Jasper. Roupas e calçados foram doados. Bolsas e malas continuam guardadas e todo o resto – talheres, copos, móveis, estofados, aparelhos de ar condicionado, panelas, chaleiras e os demais itens – foram colocados à venda com o espaçoso apartamento. Venda do tipo “de porteira fechada”, ou seja: trata-se de um imóvel mobiliado e equipado ainda à espera de interessados.
Na separação, o momento particularmente doloroso foi a partilha das fotos. Eram várias caixas de camisa e de calçados, atulhadas de imagens de aniversários, de parentes, enchentes, veraneios à beira mar de Tramandaí, da nossa infância, casamentos. Tudo estava no armário sob o aparelho de televisão analógico desativado pela era digital.
Manusear fotos coloridas e em preto e branco causaram um misto de nostalgia, saudade e dor. Ao partir, com 83 anos, dona Gerti levou reminiscências de uma família desdobrada em várias outras. Guerreira, perdeu os pais, o marido (aos 52 anos) e o filho (33 anos) em breve período de tempo.
As armadilhas da vida, porém, não tiraram o bom humor de repetidas piadas, recheadas de expressões picantes numa linguagem de “alemão sapato de pau”. Com sua mãe – a minha avó, Wilma Kirst – recordava personagens caricatos que povoaram o cotidiano árduo vivido no bairro Bela Vista.
Sou muito grato às caixas de sapato e de camisas
Depois de duas horas bisbilhotando as recordações saídas do túnel do tempo me vi sorridente, para a surpresa de meus filhos. As caixas de papelão, que originalmente abrigaram roupas e calçados, resgataram uma vida repleta de inspiração para não esmorecer no primeiro tropeço.
Jamais se tirou tanta foto como atualmente, mas é raro buscar os álbuns digitais. Muitas imagens ficarão para sempre no esquecimento, tragadas pela onda consumista do imediatismo e nos arquivos de computadores e celulares. Na minha infância ver fotos era um ritual que marcava um “carimbo na alma” com o DNA dos antepassados. Depois do almoço dominical, rir e se emocionar com os “instantâneos” eternizados em monóculos e cópias desbotadas era uma tradição que unia famílias, aproximava gerações e nos transformava, ainda crianças, em membros relevantes na cadeia doméstica.
Sou muito grato às caixas de sapato e de camisas. Elas acolheram e protegeram minha história. Preservaram minhas raízes e me ajudaram a compreender quem sou e de onde vim.