Arroio do Meio – Transtornos mentais, dependência química, desestrutura familiar. Problemas que até agora a sociedade buscava esconder vêm à tona da forma mais extremada: o suicídio. Do início do ano até agora, foram registrados nove casos no município. Destes quatro foram nos dois últimos meses. Nesta segunda-feira (16), os representantes do Conselho Municipal de Saúde (CMS) formalizaram, no gabinete do prefeito, a reivindicação por um Centro de Atenção Psicossocial (Caps).
Vários transtornos psiquiátricos estão associados com o comportamento suicida. Depressão, transtorno bipolar, uso de álcool e outras drogas, psicoses, transtorno obsessivo-compulsivo e transtorno de pânico. Na prática, qualquer transtorno psiquiátrico aumenta o risco de suicídio.
Traços de temperamento também podem estar associados ao comportamento suicida. Impulsividade e dificuldade de lidar com emoções negativas – raiva, tristeza, por exemplo. “O transtorno psiquiátrico que está mais associado com suicídio é o transtorno do humor bipolar”, revela o psiquiatra Rafael Moreno Ferro de Araújo.
Fatores familiares também estão fortemente envolvidos. A história familiar de tentativas de suicídio aumenta o risco de incidência deste comportamento. A teoria interpessoal para este ato aborda o seguinte: indivíduos que não se sentem pertencendo a algum grupo, seja ele familiar ou social, e/ou que sentem que são um peso para os outros, tendem a apresentar vontade de morrer.
“Quando esta vontade se soma ao sentimento de desesperança, a vontade de tirar a própria vida pode surgir. Caso métodos estejam disponíveis, a chance de se cometer a tentativa é alta”, explica o psiquiatra.
Existem também casos em que pessoas com baixa capacidade de conter os impulsos, após algum episódio causador de grande estresse – como um conflito conjugal -, tentam se matar com qualquer método que vem pela frente. Este tipo de caso é o que ocorre na maioria das vezes. Numa destas, a pessoa pode realmente morrer, mesmo que a intenção de morte, no momento antes da tentativa, fosse baixa.
A prevenção ainda é a forma mais eficaz de combater o comportamento suicida. Redes de apoio psicossocial organizadas, combate às desigualdades sociais, à violência e ao uso de álcool e outras drogas. Além disso, educação de qualidade e infraestrutura básica são ingredientes essenciais num programa para diminuir o índice de suicídios numa determinada região. “Famílias e redes sociais estruturadas e fortes são fundamentais para a diminuição do risco de comportamento suicida.”
Conselho Municipal da Saúde pede instalação de Caps no município
Na segunda-feira (16), o CMS, juntamente com demais representantes da comunidade, entregou ao prefeito Sidnei Eckert documento reivindicando a instalação de um Centro de Atenção Psicossocial (Caps) no município. “É iminente a intensificação, ampliação e diversificação das ações orientadas para a saúde mental do município”, expôs a presidente do CMS, Fabiane Gasparotto.
O documento leva números, que denotam a urgência em garantir a atenção a estes pacientes. Além dos nove casos de suicídios apenas em 2013, o documento destaca também que nem todos os óbitos estão como motivo relacionado à saúde mental, mas sim como causa secundária. “Entendemos que os óbitos relacionados à saúde mental sejam bem maiores.”
Eckert declarou considerar importante a reunião com o Conselho e com a comunidade. “Vimos tomando providências antes mesmo destes últimos acontecimentos trágicos, pois entendemos que é muito necessária a instalação de um ambulatório em nossa comunidade. Já nos reunimos com o grupo de profissionais que atua especificamente na saúde mental, e caminhamos para absorver a demanda do município neste segmento”, disse o prefeito.
A fragilidade das relações
A Organização Mundial de Saúde (OMS) refere que a violência autodirigida se manifesta de duas formas: no comportamento suicida – por meio de pensamentos, tentativa e pelo suicídio consumado – e por meio de atos violentos provocados contra si próprio, como é mutilações. Independentemente da atitude tomada, qualquer comportamento que venha em prejuízo da própria pessoa, podemos ter a clareza de que existe algum transtorno psíquico envolvido ali.
É claro que pode ser um transtorno que vem se configurando no decorrer dos anos, através de uma estruturação mais débil. “As razões são inúmeras, sempre vinculadas a problemas nas relações estabelecidas: famílias desestruturadas, ambientes adoecidos com altos níveis de agressividade, problemas relativos ao desemprego, questões de abusos de toda ordem, enfim situações estas associadas e muitas vezes agravadas por disfunções orgânicas”, explica a psicóloga Cynara Arenhart.
Ela lembra também que muitas vezes situações pontuais, não necessariamente estruturais, podem ser também desencadeadoras de comportamentos autodestrutivos que levam o sujeito a ter atitudes suicidas.
Pode-se afirmar que suicídio e sofrimento são palavras coirmãs, ou seja, não existe dissociação entre elas. O suicídio parte inevitavelmente de um estado de sofrimento. O desejo de tirar a própria vida, na verdade, está absolutamente atravessado ou significado no desejo de acabar com este sofrimento. Arrancar de si o insuportável.
Este ato acompanha a humanidade desde sempre. Hoje, porém, os índices são atribuídos às relações, que se constituem superficialmente. “São relações líquidas, como conceitua o sociólogo Zygmunt Bauman, que não possuem consistência. Relações superficiais e ao mesmo tempo absolutamente exigentes, carregadas de expectativas: dos pais, da sociedade e mesmo da própria pessoa, que constrói ideais, muitas vezes, inatingíveis”, expõe Cynara.
E, como estamos abordando pessoas, sujeitos, com comportamento suicida, ou seja, que possuem uma estrutura psíquica débil, o sofrimento é infinitamente maior, pois há aí uma limitação importante em termos de autoestima. Um sentimento de impotência e incompetência muito mais exacerbado.
Grandes expectativas serão geradoras, provavelmente, de grandes fracassos e, talvez, nestes momentos, o suicídio possa ser entendido como uma possibilidade de ter êxito em alguma coisa: acabar com a dor, tirando a vida, que é responsável por ela.
Índice aumenta
Segundo dados do Banco de Dados do Sistema Único de Saúde, por dia são registrados 26 suicídios no Brasil. Nos últimos 25 anos, o número de suicídios aumentou 30%, e o Rio Grande do Sul lidera os estados, com oito casos a cada mil habitantes, por ano.
Situações bem pontuais muitas vezes são desencadeadoras de comportamentos suicidas, como por exemplo: o temor de um jovem que vai viver longe da família e não suporta a pressão da faculdade; da falta de condições tanto psíquicas, quanto culturais, e até econômicas; inserir-se num novo grupo, ser aceito, são temores que assombram – pois isso requer uma infinidade de atributos, que muitas vezes a pessoa não consegue dar conta. Estar longe da família, exposto às “ameaças” do mundo, sem uma referência segura por perto, pode ser fatal.
Dentre os casos noticiados pela imprensa e no mundo virtual, nos últimos tempos, é o da estudante de Veranópolis, Giana Laura Fabi, de 16 anos. Ela se matou depois do vazamento de uma foto sua mostrando os seios. “hoje de tarde dou um jeito nisso. Não vou mais ser estorvo pra ninguém”, escreveu a garota, horas antes de se enforcar em casa, com um cordão de seda.
O jornalista Lino Bocchini, em seu blog, refere que a morte de Giana é culpa de toda a sociedade. “Vivemos numa sociedade que cobra a cada instante que você tenha sucesso. E, no caso das mulheres, por sucesso entenda-se uma cruel e impossível equação na qual você tem que ser magra, bonita e gostosa, mas por outro lado, não pode ser ‘fácil’, tem que ‘se dar o respeito’. Tem que ser bem sucedida profissionalmente”, declara Bocchini.
Interessante também mencionar a fala do bispo de Salto, no Uruguai, Dom Pablo Galimberti Di Vietri que e interroga: “Por que há tão pouca capacidade em suportar uma frustração amorosa? (…) Isso pode ser consequência de uma cultura e mentalidade narcisistas, que levam a pensar que somos o centro de toda a realidade – o que não favorece em nada a assimilação das adversidades.”
Dom Pablo acrescenta algo determinante no caso do suicídio juvenil: “Este narcisismo fracassado nos recorda o falso sonho de uma civilização feliz, conseguida mediante a tecnologia e a abundância de bens. O crescimento tecnológico não pode ocultar a pobreza da vida interior, a perda de sentido de gratuidade ou de assombro, que é tão importante, segundo os antigos, como disparador de uma experiência espiritual”.
As drogas do dia a dia
De uma simples curiosidade por uma alteração do estado de consciência, por pressão do grupo a que se está inserido, por dificuldades psicológicas, comorbidades psiquiátricas, por genética. O uso de drogas se dá por múltiplos fatores. “Percebe-se que o álcool, a cocaína e seus derivados, bem como o uso de medicamentos como droga de abuso são as substâncias que evidenciam mais a conduta suicida”, explica o consultor em Dependência Química, Eduardo Kauffmann.
Conforme o consultor, são diversas as relações entre as drogas e o suicídio. “Todo o indivíduo que faz uso de uma substância nociva ao organismo, na realidade está tomando sua ração de veneno, ou seja, de forma lenta ou rápida, está cometendo suicídio.”
Os casos de overdose seguidos de óbito, a potencialização de transtornos psiquiátricos e de doenças clínicas que também levam ao óbito não deixam de ser uma forma de suicídio. Alguns comportamentos podem indicar o uso de drogas. O isolamento social, estados depressivos, comportamentos bizarros, dificuldades com alimentação e ou sono, discurso negativista ou mesmo de ideação suicida podem evidenciar que algo não corre bem.
O diálogo, segundo o consultor, deve ser aberto na sociedade. “A saúde mental como um todo deve ser abordada. Muita vezes a pessoa não tira a própria vida, porém tem um sofrimento psíquico muito grande. Isto acontece na maioria das vezes por falta de conhecimento e orientação adequada. Devemos sim abrir o leque desse diálogo dentro da sociedade”, conclui.
O uso nocivo das tecnologias
Redes sociais, perfis, fotos, chats. O mundo da tecnologia, especialmente o da internet possibilita acesso rápido e facilitado a informações de todas as naturezas. No entanto, o uso prolongado deste aparato esconde armadilhas, que podem ser letais.
“Teremos, no mínimo um cidadão imediatista, que quer tudo aqui e agora. Em alguns casos também um cidadão que não tolera a frustração, que tem que ter um ‘perfil’ perfeito, que não sofre, que está sempre feliz. Isso tudo em sua idealização virtual, porque na realidade sabemos que a vida é bem diferente”, explica Kauffmann.
“As autoridades no assunto falam em no máximo quatro horas diárias para o uso em lazer e com uma série de orientações que vão desde a postura a hábitos alimentares enquanto, por exemplo, o indivíduo está jogando.”
E, como estamos abordando pessoas, sujeitos, com comportamento suicida, ou seja, que possuem uma estrutura psíquica débil, o sofrimento é infinitamente maior, pois há aí uma limitação importante em termos de autoestima. Um sentimento de impotência e incompetência muito mais exacerbado.
Grandes expectativas serão geradoras, provavelmente, de grandes fracassos e, talvez, nestes momentos, o suicídio possa ser entendido como uma possibilidade de ter êxito em alguma coisa: acabar com a dor, tirando a vida, que é responsável por ela.
Entrevista
“É lamentável que ainda tenham pessoas que acreditam que depressão é frescura”
É hora de trazer o assunto à tona. Depois de enfrentar todas as fases da depressão, a jornalista Jaqueline Mânica decidiu contar sua história.Preocupada com os seguidos casos de suicídio no município, ela conversa com o AT.
Por que você decidiu trazer o assunto à tona?
Acredito que, enquanto jornalista, também tenho um dever para com a informação. E tentar desmistificar a depressão também é informar. Não tenho motivos para me expor. Pelo contrário, tenho todos os motivos do mundo para querer ficar no meu canto. Mas os acontecimentos do último mês me fizeram repensar uma série de coisas. Estamos perdendo amigos e familiares para uma doença séria, que é tratada com descaso e preconceito. Hoje é um desconhecido, amanhã é alguém muito próximo de nós.
Na sua opinião, qual é a responsabilidade da sociedade nisso?
Não se tem um debate sadio a respeito da doença. Ouve-se muitas coisas, principalmente julgamentos. Mas poucos falam abertamente, chamando atenção para a gravidade da situação. Estar com depressão não é uma escolha, assim como não é uma escolha ter diabetes ou câncer. Depressão é doença. E é preciso que se diga isso. É preciso que nossa família, amigos, colegas e todos que nos cercam saibam disso. Para saber ajudar e, principalmente, se sentirem a vontade para buscar ajuda. Infelizmente o preconceito ainda é muito grande e muitas pessoas deixam de se tratar por medo do que os outros vão dizer. E assim vivem num grande sofrimento, onde nada parece ser um motivo para viver.
Precisamos quebrar com esses pré-conceitos da nossa sociedade. E para isso é importante tocar no assunto, falar que a depressão tem tratamento e incentivar as pessoas a buscarem por ele.
Em que termos o preconceito é tratado, inclusive quanto aos profissionais de saúde mental?
É fundamental esclarecer que psiquiatra e psicólogo não são profissionais para loucos, como facilmente se ouve. São profissionais que fazem a saúde mental.
Quando você passa pela terapia de grupo começa a ver a doença por vários ângulos e percebe que ouvir e ser ouvido são duas coisas fundamentais para superar essa fase ruim. Hoje se tem os grupos de Alcoólicos Anônimos (AA) e Narcóticos Anônimos (NA), mas não se tem um grupo de apoio as pessoas com depressão. Pede-se um Caps, o que acredito que é necessário e seria uma grande conquista para Arroio do Meio, mas enquanto ele não se concretiza podemos descruzar os braços e fazer algo também.
Como você procedeu em relação à depressão?
Conheci a depressão na sua pior forma – na própria pele – em 2009. Até então achava que sair dela era tudo uma questão de força de vontade e que só os fracos eram depressivos. Ledo engano. Aprendi que são os que querem ser fortes sempre, que resistem ao choro, aos desabafos e aos pedidos de ajuda, que são os mais suscetíveis. Na época fiz um tratamento medicamentoso e, aparentemente, os sintomas foram embora. Um ano depois eles voltaram. Desânimo profundo, tristeza, choro sem motivo aparente. Busquei ajuda médica e voltei ao medicamento. Meses depois abandonei a medicação por considerar que estava bem.
Em 2011 uma nova crise. Bem mais intensa, inclusive com internação hospitalar. Mas eu não queria ficar no hospital. Tinha vergonha do que os outros diriam. Foi então que iniciei um tratamento com um psiquiatra. Foi no consultório dele que entendi que o primeiro passo era aceitar que estava doente e que eu precisava me tratar. Foram longos meses de tratamento e a insistência do médico para que eu fizesse terapia. Julgava que não era necessário e fui levando, até estar convencida de que estava tudo bem e convencer o médico de que o medicamento já não era necessário. E por um bom período esteve tudo bem.
Até ter um novo episódio, em maio deste ano, que resultou numa internação de 23 dias. E foram 23 dias decisivos. Nesse período aceitei a doença e o tratamento. Aproveitei todo o suporte que o serviço de saúde mental do Hospital São José oferece. Participei de oficinas, de terapia de grupo e me permiti a rever conceitos e valores e a colocar o dedo na ferida. Fazer uma verdadeira limpeza interior. Fiz novas amizades no hospital e conheci situações que fizeram eu ver que meus problemas são grãos de areia perto de outros. Que precisam ser vistos também, mas que há situações bem piores e que sempre há solução para tudo.
Como foi e é a relação entre você, sua família e seus amigos? Qual foi o papel deles?
Minha família é nota 10! Foram eles que me deram o suporte depois do hospital. Mãe, padrasto, irmãos, tio e os primos, que são meus irmãos de coração, todos foram muito importantes. Eram eles que ouviam as lamentações, os choros e mostravam que havia outros caminhos. Foram pacientes, parceiros e respeitosos. E os amigos de verdade também estiveram e sempre estão por perto. Claro que há pessoas que você imagi-nava contar e que somem nessas horas. Mas faz parte do caminho. Uns saem e outros entram na tua vida. Conheci pessoas superespeciais e que jamais teria conhecido se não fossem essas circunstâncias.
Mas sei que há pessoas que não podem contar com o apoio da família e os amigos. Às vezes o preconceito e a falta de informação falam mais alto. É lamentável que ainda tenham pessoas que acreditam que depressão é frescura. Mesmo vendo situações dramáticas acontecendo.
O que você fez para superar a depressão?
Não tem uma fórmula mágica para superar isso. É uma série de passos a seguir, todos os dias. Nos 23 dias de hospital tomei medicação e recebi a assistência da equipe de saúde mental, participei das oficinas e convivi com outros pacientes. Depois continuei com acompanhamento psiquiátrico, medicação, comecei a fazer terapia e voltei ao hospital em muitas oportunidades para participar de oficinas e da terapia de grupo. Também busquei amparo espiritual, onde encontrei pessoas maravilhosas, que fizeram e fazem a diferença. Posso dizer que me agarrei a todas as possibilidades que me foram ofertadas. E essa gama de coisas me fez ver a vida com outros olhos, a ter novas perspectivas e, principalmente, a ter uma visão muito diferente de mim.
A terapia ajuda muito. Foi nos encontros com a psicóloga que tudo começou a ficar mais fácil, fui me conhecendo, percebendo que não preciso me cobrar tanto, que não devo me importar tanto com os outros e mais comigo. É como se você estivesse descobrindo quem você é. É um processo lento, mas muito gratificante. Hoje posso dizer que a terapia é meu tratamento. Parei com a medicação há cerca de dois meses por ordem médica e mesmo assim continuo o acompanhamento com o psiquiatra. Acho importante acatar as orientações médicas e não parar com a medicação só porque se deu uma melhorada. Muitas pessoas comprometem o tratamento assim. Se foi o médico quem receitou, só ele pode dizer para parar.